No dia 4 de setembro, em nota, Flordelis declarou: Flordelis: 'Não posso
ser julgada e muito menos condenada antes que todo o processo seja concluído'
(Michel Jesus/Câmara dos Deputados)
Flávio Saliba
Já disse o filósofo que a interdição do incesto foi o primeiro ato
civilizador. O que dizer do nosso estágio civilizacional frente à infinidade de
estupros perpetrados por pais, irmãos, tios contra crianças e adolescentes?
Uma criança abusada pelo tio desde os 6 anos de idade ficou grávida aos
10. Outra de 12 anos era abusada pelo pai quando a mãe saía com irmão para
colher açaí na Ilha de Marajó. Não são casos isolados, como ocorre em outras
plagas. São parte dos 66.041 estupros registrados nas delegacias em 2018, dos
quais 53,8% contra crianças com menos de 14 anos, uma média de 96 vítimas por
dia nessa faixa etária, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Alguém tem dúvida de que o número de estupros não comunicados às
autoridades policiais seja muito maior? Tais abusos ocorrem com mais frequência
entre as camadas sociais mais vulneráveis e menos educadas em que os impulsos
instintivos ainda não foram superados pela racionalidade promovida pelo
processo civilizador, como sugere Norbert Elias. Fruto das desigualdades?
Talvez. Mas, paradoxalmente, são as desigualdades que nos igualam, como povo,
na violência, nos traços autoritários e nos abusos perpetrados em várias
esferas da vida social, notadamente na vida política.
Estava exatamente neste ponto do meu argumento quando ouvi no noticiário
as denúncias de abusos ocorridos dentro da vastíssima "família" da
deputada federal Flordelis dos Santos, incluindo relações sexuais entre irmãos,
entre pais e filhos e sabe-se lá o que mais. Não fosse ela uma figura pública,
acusada de mandar matar o marido, o caso dificilmente ganharia as manchetes.
Seria um fato corriqueiro numa sociedade onde crime, ignorância, indústria da
fé, negócios e política partidária se retroalimentam.
O estado do Rio de Janeiro é o exemplo mais acabado desta praga
brasileira. Já não se trata mais da penetração do crime nas instituições
públicas e, sim, do próprio estado, transformado em organização criminosa, que
escolhe quem entra ou fica de fora, quem se elege ou come pelas beiradas. Não é
à toa que, mesmo com a prisão ou afastamento dos últimos seis governadores do
Rio de Janeiro, os esquemas de assalto aos cofres do estado permanecem
incólumes. A alternância no poder é para inglês ver.
Nas sociedades onde o processo civilizador alcançou patamares mais
elevados reinam a democracia política e os direitos civis, em uma palavra, a
cidadania. Esta não apenas favorece a clara distinção entre o público e o
privado como estabelece parâmetros de convivência pacífica entre os cidadãos.
Nelas os índices de suicídio superam enormemente os de homicídio, ao contrário
de sociedades semicivilizadas, como a brasileira, onde os homicídios são a
regra. Nas primeiras prevalece a autopunição, nas segundas a justiça pelas
próprias mãos.
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